Do vício ao investimento
O que Bets e bolsa têm em comum (e por que isso importa)
Edição #001
Nos primeiros meses de 2025, as chamadas “bets” — plataformas de apostas esportivas online — movimentaram mais de R$ 17 bilhões no Brasil. O número, por si só, já é expressivo. Mas o que chama mais atenção é o contexto em que ele acontece. O crescimento das bets tem sido tão relevante que seus efeitos indiretos começaram a aparecer até na medição da inflação pelo IBGE, ao lado de itens como energia elétrica e alimentos. Em outras palavras, o vício passou a ser economicamente mensurável.
Mas não se trata só de um fenômeno de consumo. O sucesso explosivo das apostas online é também um retrato de quem somos enquanto sociedade — e, por isso, precisa ser observado com mais profundidade.
O Brasil é um terreno fértil para esse tipo de promessa de retorno rápido. Um país em que grande parte da população vive sem acesso a serviços básicos como saneamento, segurança ou educação; em que milhares de pessoas moram em regiões dominadas por facções locais e onde o consumo de álcool, cigarro, drogas e crédito acontece muito antes de qualquer orientação sobre poupança ou patrimônio.
Nesse ambiente, a aposta surge como um atalho. Uma forma de escapar, ainda que brevemente, de uma realidade dura — muitas vezes, sem perspectiva de progresso consistente. A promessa é simples: você pode vencer hoje, agora, mesmo sem estrutura. E isso vicia.
Mas o vício aqui não é apenas simbólico. Ele é químico. A cada aposta feita, a cada possibilidade de vitória, o cérebro libera dopamina — o neurotransmissor da recompensa. Junto dela, entram em cena também a noradrenalina, que ativa o estado de excitação, e a serotonina, que alivia a tensão depois de uma aposta “bem-sucedida”. O ciclo se retroalimenta. Apostar vira uma forma de obter prazer rápido, com pouco esforço, mas alto custo — financeiro, emocional e social.
E é justamente aqui que surge um paralelo mais desconfortável, mas necessário: o comportamento de muitos investidores hoje não é muito diferente.
Embora disfarçado de Trade com base em análise técnica e racional de mercado, o que vemos em muitos casos é investidor buscando no mercado o mesmo tipo de gratificação emocional que as bets oferecem. Um alívio, uma descarga de adrenalina, uma fuga da rotina. Alias, dizer que somos seres racionais é uma das maiores mentiras contemporâneas, mas deixemos este assunto para uma próxima edição.
São os casos de quem acorda e, antes mesmo do café, já está operando índice futuro. De quem gira 90% da carteira em 30 dias. De quem segue canais de Telegram esperando um “call quente” para aplicar em operações alavancadas. E, principalmente, de quem mede sucesso por “acertos de curtíssimo prazo”, sem plano, sem balanço, sem método. A semelhança com o jogo não está no instrumento — mas na motivação por trás do gesto.
E, para deixar claro, isso não é exclusividade de quem está começando. Investidores experientes também podem cair nesse padrão, especialmente em momentos de mercado mais voláteis, quando a ansiedade por “recuperar perdas” ou “aproveitar o movimento” se torna maior do que a racionalidade. O resultado, na maioria das vezes, é o mesmo: frustração, perda de controle e desvio completo do propósito inicial.
Por isso, a verdadeira diferença entre o bom investidor e o jogador está na capacidade de gerenciar o próprio comportamento — não os ativos. O bom investidor não depende da adrenalina para seguir investindo. Ele investe com base em um plano claro, adequado ao seu perfil, que respeita ciclos econômicos e que entende que retorno é consequência de tempo + consistência, e não de impulso + sorte. Ele tem outras distrações: família, trabalho, projetos que ocupam a mente e a vida para além da tela.
Enquanto isso, o jogador vive no modo “refresh”: atualizando o app, a cotação, a próxima operação. Não busca liberdade financeira. Busca a excitação do próximo movimento. E, como nas bets, quanto mais movimenta, mais perde.
A conclusão é incômoda, mas inevitável: o mercado pune quem tenta tratá-lo como jogo. E premia quem o enxerga como processo.
Esse dilema me lembra um experimento clássico, conhecido como Rat Park, conduzido pelo psicólogo Bruce Alexander. Nele, ratos isolados em gaiolas com água normal e água misturada com cocaína acabavam viciados e, muitas vezes, morriam por overdose. Mas quando os ratos estavam em um ambiente estimulante — com espaço, brinquedos e interação social — o vício simplesmente desaparecia. Os mesmos ratos, com os mesmos estímulos, reagiam de forma completamente diferente quando o ambiente era saudável.
A lição é simples, mas profunda: o problema não está só na substância — está no vazio que ela tenta preencher.
No mercado financeiro, não é diferente.
Investir com consciência não é só entender o que você está comprando.
É entender por que está comprando — e o que está tentando resolver com isso.
Nos vemos na próxima edição.
— Paulo Cunha